É um espaço que muitos de vós provavelmente nunca ouviu falar, mas é sem dúvida um local de visita a registar: chama-se Complexo da Fábrica da Pólvora de Barcarena, localizada no concelho de Oeiras.
Este Complexo integra o Museu da Pólvora Negra (instalado no edifício da antiga Casa dos Engenhos), as instalações da antiga fábrica, um Auditório, uma sala de conferências, um jardim infantil, uma zona de lazer e restauração e alguns espaços verdes.
Algumas belas imagens deste espaço podem ser visionadas
aqui.
Nos dias 8 e 9 de Abril decorreram algumas actividades (conferências e visitas guiadas) organizadas pelo Grupo de Amigos do Museu da Pólvora Negra com o apoio da C.M. de Oeiras.
A conferência do dia 8 estava subordinada ao tema “A Fábrica da Pólvora e a 1ª República” e, dada a importância da questão, o MNA esteve presente.
Entrevistámos o 1º orador do dia, Dr. Jaime Regalado, licenciado em bioquímica e pós-graduado em história militar, e sócio fundador do Grupo de Amigos anteriormente referido.
1. De acordo com as suas conclusões, na I Grande Guerra Mundial, a participação da Fábrica da Pólvora Negra no esforço de guerra foi diminuta, devido à generalização da utilização de pólvora simples que se verificava na altura. Qual ou quais foram então os momentos da nossa história em que a produção da fábrica teve maior relevância?
Em primeiro lugar importa esclarecer que este espaço teve início (ainda no Reinado de D. João II) como ferraria, onde se produziram algumas armas e, posteriormente (no reinado de D. Manuel I) como fábrica de pólvora.
A sua localização priveligiada junto à ribeira de Barcarena permitia através dos seus engenhos hidráulicos assegurar o funcionamento de engenhos quer para o fabrico de pólvora quer para o fabrico de armas e artefactos de guerra.
Na sua constituição, esta fábrica foi repositório da melhor tecnologia de fabrico e processamento do ferro da Europa, importando-se mestres biscaínhos que trouxeram a sua tecnologia de ponta, na época.
Assim, poderei dizer que foi da maior importância em todos os momentos importantes da história de Portugal sempre no sentido de assegurar a expansão e consolidação dos territórios além-mar e na restauração/manutenção da integridade nacional aquém e além mar.
A importância das armas de fogo e da artilharia (sobretudo naval) é indiscutível na gesta dos descobrimentos. A fábrica da Pólvora de Barcarena assegurou a produção da maioria da pólvora para esses fins, como fábrica tutelada pela Coroa, a par com outras é certo, mas sendo esta de maior importância.
Nas Campanhas da Restauração, conheceu igualmente um momento alto da sua laboração, pois não só fabricou a pólvora necessária como o fabrico e recondicionamento de mosquetes (ditos mosquetes de Barcarena) e peitorais de ferro, assegurando uma parte do armamento necessário, tão difícil de adquirir por Portugal, num período que a obtenção de armamento no estrangeiro estava limitada pelos escassos recursos financeiros e aos países que reconhecessem o direito à auto-determinação de Portugal em relação à coroa Castelhana.
Já mais tarde. Quando pelo posicionamento português face à autodeterminação dos povos africanos nos territórios portugueses, em que Portugal foi alvo de diversos embargos. Assunto onde até o os Eua (J. F. Kennedy) alinharam com a Rússia contra a presença portuguesa em África (e discretamente o Vaticano). A industria militar portuguesa teve que assegurar grande parte da produção de material de guerra.
Este esforço, que se manteria ao longo de 13 anos, levou a que a Fábrica da Pólvora de Barcarena passasse a produzir munições já não de pólvora negra, carregasse morteiros de 60 e 81 mm, granadas-foguete para o LGF 8,9 mm, (granadas-foguete anticarro 5,9?), granadas de artilharia 105 mm, 155 mm e de artª de costa com o 23,8 cm.
Também foram carregadas nesta fábrica algumas das bombas que a FA utilizava, nomeadamente as de 1 Ton, carregadas com TNT.
2. Na década de 50 do século passado a fábrica mudou de nome e passou a produzir outros tipos de pólvora química, dada a desactualização da pólvora negra. Chegou a registar nesta década o maior número de trabalhadores do seu historial, tendo posteriormente encerrado e reentrado em funcionamento em 1976, para encerrar definitivamente em 1988. A que se deveu o encerramento pré-1976? E qual a razão para, depois da reabertura, ter durado apenas 12 anos?
A Guerra Civil Espanhola e a hipotética ameaça daí imergente bem como a eminência de um conflito à escala mundial que já se pressentia, impuseram a Portugal a necessidade de uma profunda reforma militar. Neste contexto, a partir de 1937, materializou-se a modernização do armamento ligeiro que implicou igualmente uma modernização nos métodos e processos de fabrico.
Apesar da intensificação da actividade das indústrias militares portuguesas durante a 2ª Guerra Mundial, foi já no pós-guerra que se observou o maior incremento.
No plano internacional, o fim da 2ª Guerra Mundial, não resultou num processo de pacificação mas sim numa bipolarização do poder politico-militar, com a consequente corrida ao armamento convencional e estratégico.
No plano nacional, vivia-se um período de grande entusiasmo industrial que trouxe a criação de novas unidades fabris e a reorganização das existentes, no âmbito de uma política económica nacionalista e autárcica.
A adesão de Portugal ao Plano Marshal em 1948 e depois à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN-NATO) em 1949, nesta conjuntura económica nacionalista portuguesa, trouxeram um desenvolvimento significativo na industria militar portuguesa quer ao nível dos processos de fabrico, quer no enriquecimento do património humano, investindo na formação dos seus funcionários, que frequentaram diversos cursos de especialização no estrangeiro.
Assim, foi possível estabelecer diversos contratos de produção de munições de armas ligeiras, de artilharia, morteiros, etc., para diversos países da NATO, principalmente para a RFA.
A Companhia Portuguesa de Munições de Barcarena (CPMB), também contemplada com 300 000 USD ao abrigo do Plano Marshal, embora destinada principalmente à produção de pólvoras de caça, artefactos de sinalização e engenhos pirotécnicos, viu-se também envolvida na produção de material de guerra, como granadas de morteiro, espoletas, granadas de artilharia de campanha (por vezes a par com a Fundição de Oeiras que produzia os componentes em ferro fundido dessas granadas), para que fosse possível cumprir os quantitativos desses contratos de fornecimento.
No início da década de 1960, com o desencadear das acções de sublevação armada em Angola, Moçambique e Guiné, teve início um conflito que duraria 13 anos, nestes três teatros de operações.
Pela natureza deste conflito surgiu a necessidade de novo armamento mais adequado à guerra de contra-subversão.
Os embargos internacionais, mais ou menos discretos, que resultavam do isolamento em que o regime português havia sido colocado, pelo seu posicionamento anti-autodeterminação, impediram a aquisição de armamento no estrangeiro, para fazer face a esta necessidade.
Paralelamente, a impossibilidade de utilização do material de guerra recebido no âmbito da NATO em acções militares nas colónias (abaixo do Equador), obrigaram à intensificação da actividade de todos as instalações fabris do exército, com potencial para a produção de equipamento, viaturas, armamento e munições, na qual as instalações de Barcarena tomaram parte activa.
O encerramento da fábrica ocorre quando a fábrica estava sob administração belga. Na verdade a explosão que se deu em Novembro de 1972, condenou-a ao seu encerramento. Reabriria em 1976 com grande dificuldades financeiras e destinado ao fabrico de pólvoras de caça. A partir de 1985 passa a fazer parte do INDEP e manteve-se em laboração até 1988.
A razão do seu encerramento em 1988 penso que terá a ver com um processo de redução da autonomia militar de Portugal, ditada internaciomalmente. A fábrica de Barcarena foi o primeiro complexo a ser encerrado, seguiram-se os restantes. Fábrica de Braço de Prata e FNMAL em Moscavide.
Tendo tomado contacto com algumas pessoas desta última, ninguém percebe o seu encerramento, quando recentemente havia sido adquirido equipemento para as linhas de montagem e para o laboratório de certificação mo mis moderno.
Há situações pouco perceptíveis, pois a própria policia portuguesa comparava as suas munições de 9 mm à Selier & Bellot e recusava as municões do INDEP. Com qualidade irrepreensível, uma das três unicas fábricas de munições na Europa com certificação NATO. A FNMAL fornecia munições militares para os exercitos de uma série de paises da Europa e não só, entre os quais a Alemanha e produzia munições de elevada qualidade para competição (No meu percusrso como atirador, tendo falado com alguns atiradores finlandeses que quando disse que era português, de imediato me referiram que tinha sido uma pena o encerramento da fábrica pois eram excelente as munições 7,62 lá fabricadas, sobretudo as que usavam projécteis Sierra). O encerramento da fábrica trouxe inclusivamente problemas de cumprimento contratual com alguns paises, pois deixaria de poder fornecer nos anos vigentes no contrato.
Portanto, a tese da inviabilidade financeira não faz sentido. Oscila-se pois entre o interesse imobiliário dos terrenos onde estavam as fábricas (Moscavide e Braço de Prata) ou, numa hipotese mais rebuscada, por um qualquer interesse obscuro de retirar a Portugal a sua autonomia em termos de fabrico de munições.
A fábrica de Moscavide foi desmantelada e a maquinaria vendida para Espanha (penso eu). Tudo isto para explicar que o encerramento de Barcarena pode não ter uma razão tão óbvia quanto isso.
3. Uma das curiosidades que referiu nesta conferência foi o facto de, entre 1920 e 1925, terem rebentado 350 bombas em Lisboa (de acordo com os registos oficiais) e terem ocorrido 20 revoluções entre Lisboa e Porto, factos significativos que espelham bem o caos e a instabilidade daquele regime, vangloriado por muitos dos partidários do regime actual. Que outras curiosidades nos pode apontar sobre esta época fatídica?
O período entre 1920 e 1925 foi realmente um periodo muito conturbado. Mas a conturbação não começou em 1920. Logo apos a implantação da Republica tiveram início diversas revoluções. Porém, quando se fala em revoluções neste periodo, o leitor incauto pode pensar que se tratam de reacções monárquicas. Mas não. Com excepção dos combates de Chaves, Vila Real e Vinhais, entre 1911 e 1912, contra as forças chefiadas por Paiva Couceiro e em 1919, também contra forças lideradas por Paiva Couceiro, na sequência da “restauração” da Monarquia do Norte (combates em Monsanto-Lisboa), todas as restantes revoluções ocorreram motivadas por diferentes facções republicanas.
Não me vou deter a fazer um levantamento destes actos revolucionários e das suas motivações, pois seria um trabalho demasiado moroso. Mas lembro por exemplo a questão da noite sangrenta, que me parece paradigmática do ambiente que se vivia antes do golpe militar de 1926.
Sobre este assunto remeteria para a pena da Jornalista Joana (parece que entretanto falecida) que publicou no seu Blogue Semiramis uma descrição dos acontecimentos relativamente à noite sangrenta também conhecida pelo episódio da Camioneta Fantasma, que me parece muito correcta:
(pesquisar NESTA LIGAÇÃO o tópico “19 DE OUTUBRO DE 1921”)
4. A Associação de Amigos do Museu da Fábrica da Pólvora nasceu em 2010 e esta foi a sua primeira actividade. Que outras actividades estão agendadas? Para todos aqueles que lêem estas linhas, o que lhes pode dizer acerca das vantagens em visitar este espaço
O GAMPN (Associação do Grupo de Amigos do Museu da Pólvora Negra) tem para 2011 uma agenda que inclui uma visita à Fábrica da Pólvora de Vale de Milhaços (uma unidade de produção de pólvora, de natureza privada, que funcionou até à bem pouco tempo na produção de pólvora negra) com o objectivo de dar a conhecer as instalações esta unidade, muito bem preservadas. Esta iniciativa, no âmbito da divulgação do nosso património industrial é aberto a outros elementos que não apenas os sócios do GAMPN.
- Restauro de peças do património da fábrica que pela sua relevância tecnológica devam ser restaurados (caso de dois peneiros).
- Estudo de peças do espólio do museu,
- Visitas guiadas temáticas, etc.
Na prática, duas grandes linhas:
I.
I) Divulgar o património histórico-cultural das Ferrarias/ Fábrica da Pólvora de Barcarena, junto da população e da comunidade científica das diversas áreas de estudo: História industrial, história militar, etc.
II) Enriquecer o património do referido Museu.
Um extraordinário testemunho histórico para reflectir; um espaço imprescindível para visitar. O MNA agradece!